Vejo pouca gente consciente da gravidade da declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, em julgamento no Supremo.
Em primeiro lugar, é fundamental lembrar que a Constituição estabelece a divisão de poderes, atribuindo ao Legislativo a criação de leis, e nunca ao Judiciário. Estamos mais uma vez assistindo à usurpação dessa prerrogativa.
A justificativa de “demora” do Congresso para “regular” a internet não é válida, já que a internet está sujeita às leis ordinárias. É relativamente comum a condenação por crimes contra a honra cometidos online, entre outros. Além disso, o Marco Civil da Internet, aprovado pelo Parlamento, define detalhadamente o funcionamento das redes.
Quando o Parlamento analisa um tema e decide não aprovar mudanças, isso também é uma decisão. A falta de consenso sobre a chamada “Lei das Fake News” reflete a percepção da maioria dos parlamentares de que ela representa uma ameaça à liberdade de expressão. Como representantes do povo, os deputados têm legitimidade para rejeitar tal iniciativa.
Em segundo lugar, o mérito do julgamento carrega o potencial de instaurar censura em massa na internet. Para compreender o motivo, é necessário revisar o contexto que nos trouxe até aqui.
Houve ampla liberdade de expressão na internet até que a rede começou a ser dominada por vozes da direita, o que passou a ser visto como uma ameaça ao establishment globalista. Após eventos como o Brexit e a eleição de Trump, emergiu um sistema de censura articulado por empresas de tecnologia, ONGs, universidades e agentes estatais.
Nesse contexto, surgiram as controversas “agências de fact-checking”, responsáveis por identificar e pressionar pela remoção de conteúdos considerados “falsos, antidemocráticos, preconceituosos ou de discurso de ódio”. Na maioria dos casos, tratava-se de opiniões conservadoras, censuradas por uma máquina de repressão alinhada à esquerda.
Até a compra do Twitter por Elon Musk, havia uma hegemonia de esquerda nas empresas que controlam a web. Essa máquina de repressão era formada por agentes privados sob influência e direcionamento estatal.
No Brasil, avançou-se ainda mais. Sob influência do ordenamento jurídico europeu, foi instituído um sistema de repressão estatal, simbolizado pelo Inquérito das Fake News e seus desdobramentos. Desde então, centenas de pessoas foram censuradas por decisão judicial, com conteúdos removidos ou perfis bloqueados — algo ainda mais grave.
A Constituição brasileira proíbe a censura prévia. Curiosamente, em 2020, durante um congresso de jornalistas, o ministro Moraes foi questionado sobre se o bloqueio de perfis configurava censura prévia. Segundo matéria do UOL, ele afirmou:
“A decisão não foi censura prévia porque em momento algum eles foram proibidos de continuar na rede, de falar. Até cheguei a colocar na decisão que a abertura de novos perfis, inclusive para novas ofensas, estaria permitida e seria analisada. Se a ideia fosse fazer censura prévia, a decisão deveria proibir de abrir qualquer perfil. Isso é censura prévia, se fosse a proibição de abrir qualquer perfil na rede social. Não foi essa a determinação.”
Posteriormente, o ministro passou a proibir que pessoas com perfis bloqueados abrissem novos perfis. O Telegram e, mais tarde, o X chegaram a ser retirados do ar no Brasil por se recusarem a implementar essas medidas.
Agora, busca-se terceirizar essa repressão com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil, que prevê a responsabilização civil das empresas apenas quando não removem conteúdos após ordem judicial.
Pelo voto do relator, ministro Toffoli, que provavelmente será aprovado pela maioria do colegiado, as empresas deverão monitorar ativamente as redes para remover conteúdos relacionados a:
– Crimes contra o Estado Democrático de Direito;
– Terrorismo e atos preparatórios;
– Indução ao suicídio ou automutilação;
– Racismo;
– Violência contra crianças, adolescentes, pessoas vulneráveis ou mulheres;
– Infrações sanitárias em emergências de saúde pública;
– Tráfico de pessoas;
– Incitação ou ameaça de violência física ou sexual;
– Divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para incitar violência ou prejudicar o processo eleitoral.
O problema é que, nos últimos anos, meras opiniões e críticas têm sido classificadas como “fake news” ou “crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Os demais pontos também carregam um alto grau de subjetividade.
Além disso, segundo o portal Jota: “como regra geral, o provedor será responsabilizado civilmente, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, inclusive na hipótese de danos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, quando, notificado pelo ofendido ou seu representante legal, preferencialmente pelos canais de atendimento, deixar de promover, em prazo razoável, as providências cabíveis, ressalvadas as disposições da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE.
O provedor de aplicações de internet, passa a responder civilmente independentemente de notificação, de acordo com o voto de Toffoli, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando:
1) recomendem, impulsionem (de forma remunerada ou não) ou moderem tais conteúdos, havendo responsabilidade solidária com o respectivo anunciante ou patrocinador, quando se tratar de anúncios publicitários ou de material patrocinado;
2) se tratar de conta inautêntica (também denominada de “perfil falso”), ou de conta desidentificada e/ou automatizada;
3) se tratar de direitos do autor e conexos, solidariamente com o terceiro responsável pela efetiva publicação/postagem do conteúdo.
Imagine o caso de uma figura pública ou autoridade alvo de críticas. Basta uma notificação à rede social para gerar a remoção do conteúdo, mesmo que seja uma crítica legítima. As redes sociais terão forte incentivo para censurar.”
Imagine o caso de uma figura pública ou autoridade alvo de críticas. Uma simples notificação à rede social pode levar à remoção do conteúdo, mesmo que seja uma crítica legítima. As redes sociais terão forte incentivo para remover conteúdos.
Até mesmo a militância de redação, que frequentemente defende com vigor a “regulação” das redes, parece preocupada com as implicações desse julgamento. Patrícia Campos Mello, autora da matéria sobre os supostos “disparos em massa” para influenciar as eleições de 2018 — utilizada como justificativa para a abertura da CPMI das “Fake News” — classificou o voto de Toffoli como uma “bomba nuclear” e uma “jabuticaba”, em uma série de artigos publicados na Folha, recentemente.
Ela também repercutiu as críticas das Big Techs, que alertaram sobre o risco de se estabelecer um regime de “censura privada”, caso o voto do relator seja aprovado.
Não é por acaso que a Declaração de Direitos da Constituição americana coloca a liberdade de expressão como o primeiro direito fundamental. Democracia e livre expressão são inseparáveis, pois é através dessa liberdade que os poderosos podem ser criticados e responsabilizados pelo povo. Além disso, sem liberdade de expressão, a busca pela verdade torna-se inviável.
Ao longo da história, todo regime autoritário buscou, em primeiro lugar, controlar o fluxo de informações e silenciar vozes dissidentes.
Infelizmente, o Brasil parece caminhar nessa direção.
Por Leandro Ruschel*
- *A opinião expressa neste artigo é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Br101news não tem responsabilidade legal pela “OPINIÃO” que é exclusiva do autor.